Crónicas de Jorge C Ferreira | As arcas e os baús

21 Ago 2017 | Crónica | Jorge C Ferreira

 

As arcas e os baús

 

As arcas e os baús, a mania de guardar coisas. Os papéis e as roupas. As bolas de naftalina e a cânfora. As arcas que são mães de todas as arcas. Os segredos guardados a cadeado com ferragens quase medievais. O cinto de castidade.

As arcas de madeira simples, as arcas carunchosas, as arcas de cânfora, as arcas de folha, as arcas de porão, a arca congeladora e a última de todas as arcas, o caixão.

Arcas forradas. Arcas pintadas. Arcas escondidas. Arcas caladas. Arcas enterradas. As arcas das avós. As arcas do enxoval. As arcas que são bancos. As notas que não sobram. Um violino escondido entre lençóis de linho.

Quem não teve uma arca pequena com o seu enxoval de bebé?

As arcas dos poetas. A arca de várias vidas de uma escrita encantada. As folhas timbradas de uma firma. O papel de grossa gramagem. A tinta que nunca se esgotou. Algumas cartas de amor. Tanta gente dentro da mesma arca. Alguma discussão, sempre um macio acordar. Uma arca com vida dentro. Uma arca inesgotável.

Os baús com cartas choradas. Cartas escritas à mão. Cartas de amor inteiro e distante. Uma escrita arrebatada. Amores sentidos. Amores sofridos. Amores proibidos. Amores de conventos, amores de amantes, amores proscritos. Sempre a malvada inquisição. As fogueiras e as censuras. O aviltamento. O mau-olhado. O sal e água. A impossível purificação. As proibições sem sentido. As tenebrosas condenações. Morrer de amor.

As arcas dos enxovais. Um cheiro especial. Os linhos bordados. Os imaculados lençóis. Uma toalha da Ilha da Madeira, os guardanapos iguais. Tanta coisa de guardar. Muito pouca de usar. Coisas que não eram para andar a uso. Mal empregadas, diziam. A arca a abarrotar que chegava, muitas vezes, incólume até ao dia da morte da velha noiva. As coisas eram apenas, de tempos a tempos, viradas, aconchegadas de novo pelos panos brancos que as protegiam e era tudo.

As arcas de porão. As arcas de  viajar. As longas viagens. As viagens de uma vida. Percorrer caminhos de deuses e mafarricos. Levar necessidades e inutilidades. Trazer exóticas recordações. Sedas, tapetes voadores, joias, arte indígena, preciosos robes bordados. Moedas muito antigas. Ouro, incenso e mirra. Coisas de naus muito antigas. Viagens de não chegar. Navegar e naufragar.

As arcas das viúvas virgens. As noivas a quem mandaram os noivos para as criminosas guerras. Mulheres que casaram por correspondência, vestidas de branco, véu e grinalda. O noivo do outro lado do mar, aperaltado e acompanhado pelos companheiros de desdita. Fez-se banquete como mandavam as regras. Partiu-se o bolo. Uma faca cheia de lágrimas. Houve o segundo fato e, depois, tudo regressou ao antigamente. Quando recebeu a notícia fatal. A única que não queria receber. Queimou o enxoval e o vestido de noiva, encheu a arca com os aerogramas, as fotos e restantes recordações dele. Aquela arca passou a ser o seu sacrário. Junto a ela rezava e chorava. Assim passou anos sem fim.

A última arca, salvo raras excepções, não somos nós que a escolhemos. Chegam uns fulanos, vestidos de preto e com um ar circunspecto, a casa da família, munidos de um catálogo, com fotos e preços, e é só escolher como aconchegar melhor o defunto. Arcas de enterrar, arcas de soldar, arcas de queimar. Que descanse em paz, costumam dizer.

«Olha que essa coisa de falares do caixão como uma arca, não me agradou nada. Podias ter falado da arca do tesouro e dos piratas, era mais bonito.»

Voz da Isaurinda.

«Sim podia, mas a simbologia da arca nos acompanhar toda a vida, desde o enxoval do bebé, obrigou-me a acabar assim.»

Respondo.

«Seja como for, não gostei…»

De novo Isaurinda e foi, o pano na mão.

Jorge C Ferreira Ago/2017(135)

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